Grandes homens da ciência como Richard Dawkins e Neil
deGrasse Tyson, têm utilizado seu trabalho e renome para tentar convencer-nos o
contrário. Mesmo assim, a história humana parece construir uma unanimidade de
opinião quanto ao seu caráter superior. Descartes, no século XVIII, dizia que a
linguagem é a materialização do nosso domínio. A irrefutável evidência da
autocracia sobre o cosmo.
Tudo isso foi construído pela racionalidade. Tão venerada
racionalidade. A qualidade que falta a
tudo mais e que, por tanto, justifica a sua subjugação. Nesse sentido, os
centros urbanos são o antro do Pensar. Quanto mais pessoas, mais razão. A
tecnologia e o pensamento racional andam juntos, dizem alguns. Parece justo,
então, inferir que o homem gosta de
pensar. Alguns discordam.
Em Androides Sonham
com Ovelhas Elétricas?, livro de Philip K. Dick que deu origem ao renomado Blade Runner, a massa populacional
utiliza constantemente um “sintetizador de ânimo”. Um aparelho capaz de
suprimir ou estimular áreas do cérebro responsáveis pelo controle hormonal. Um
controlador de emoções. Dentre suas centenas de configurações estão o 481,
motivação baseada na esperança de futuro bom, 888, vontade de assistir TV, 003,
vontade de ter vontade e 594, “agradecido reconhecimento da sabedoria superior
do marido sobre todas as coisas”.
Aldous Huxley, em sua obra prima, Admirável Mundo Novo, descreve um futuro de mecanização humana tão
feroz que Henri Ford se tornou um messias. Não existem nascimentos naturais. Os
homens são engenhados quimicamente para ocuparem lugares predeterminados no
sistema de castas instaurado. Não existem famílias, e para aplacar
questionamentos existenciais, o soma
é utilizado sem restrições. O soma é uma droga de distribuição estatal, sem
aparentes efeitos colaterais e cujo slogan é “Com
um centímetro cúbico se curam 10 sentimentos lúgubres”.
Já
em 1984, livro de destaque de George
Orwell, e talvez o romance mais importante do século XX, a realidade não é tão
aprazível. Escrito em 1948, o livro é fruto de uma era conturbada, de conflitos
genocidas e de estabelecimento de soberanias continentais. O
protagonista, Wiston Smith, vive em Oceânia, um dos três amálgamas de nações
totalitárias que compartilham o mundo. Observando o final da Segunda Guerra
Mundial, Orwell extrapola o poderio dos três blocos socioeconômicos imaginando
sua futura autocracia global. O capitalismo norte-americano, o socialismo
soviético e o desenvolvimento vertiginoso das potências asiáticas. Independente
do lugar, a autocracia, crua ou disfarçada, é o único sistema de governo
presente.
Nesse universo, também há tecnologias como as dos livros
anteriores. No entanto, sua utilização é bem menos confortável. O Gim Victory, também de distribuição
estatal, é descrito por Smith como o que o faz levantar da cama todas as manhãs
e dormir todas as noites. Apesar dessa dependência, o protagonista não tem
dúvidas acerca de sua qualidade: “A substância parecia ácido nítrico e ao
engoli-la a pessoa tinha a sensação de receber um golpe de cassetete na nuca.
Logo em seguida, porém, a ardência no ventre esmoreceu e o mundo começou a
parecer mais prazeroso”
Todas essas tecnologias, o sintetizador de ânimo, o soma
e o Gim Victory, são mecanismos de
controle social. Todas agem aplacando as dúvidas existencialistas e
insatisfações sociais, transformando tudo num torpor agradável. Elas
interrompem o diálogo-ponte entre consciência e realidade. Fabricam emoções que
preenchem o vazio que inevitavelmente cresce em todo ser humano.
Descritos nos romances, esses mecanismos parecem muito
simples. Até idiotas. Tomam as pessoas por crianças, manipuláveis até o limite
imaginável. Vemos seu mundo desmoronando, bombas explodindo, sirenes gritando,
e, no entanto, a poltrona parece muito confortável enquanto doses industriais
de serotonina se acumulam entre os neurônios. É angustiante ler a descrição de
uma sociedade tão passiva e alienada como as expostas nas distopias clássicas.
Bem.
Televisão, drogas, rádio, revistas, internet, telefones,
publicidade, música, livros... funcionam todos da mesma forma. São todas
tecnologias de transporte para uma realidade paralela. Interrompem a sua
solidão, e por consequência, a sua autorreflexão. Fazem com que você absorva,
através de estratégias psicológicas, qualquer coisa que for conveniente.
Bloqueiam sua racionalidade.
É evidente que os objetos citados são apenas ferramentas.
Tal qual um martelo, podem construir ou machucar. Na verdade, boa parte deles
desempenhou, e têm desempenhado um papel importantíssimo na distribuição de
conhecimento. Na democratização de conhecimento. No entanto, é inegável a
discrepante proporção numérica correspondente às funções dadas a essas
tecnologias. A proporção que representa a quantidade de vezes em que
pensamentos, necessidades e emoções são forjadas é absurdo. É tão visível que
alienação se tornou sinônimo da maioria dos aparelhos.
Aqui vale ressaltar que o entretenimento não é
necessariamente uma coisa ruim. Faz parte do homem enquanto ser social. Que
pessoa não gosta de rir? Sentir a dormência de um bom relaxante muscular? Não
há meio de dissociar o homem de sua comunhão. Dessa forma, não há como
delimitar até que ponto uma risada é genuína ou induzida por mecanismos
artificiais de diversão.
No entanto, não se trata de buscar o âmago do humor
humano. Trata-se de desvendar o seu verdadeiro papel social na realidade Moderna.
E este é, sem mais demoras, a fuga.
Fugimos o tempo todo. É tudo que fazemos. Escutamos
música no trajeto do trabalho. Ingerimos álcool até que um sorriso
incontrolável brote nas nossas faces e a realidade pareça pouco importante.
Ligamos o aparelho de TV para rir, chorar, nos assustar, viver uma vida que não
é nossa. Viciamos-nos numa alegria fabricada pelos aparelhos da modernidade.
Não existe mais solidão. Nossos celulares tocam incessantemente, nos avisando
que pessoas estão interessadas em nós, e prontamente são respondidas pelo
interesse recíproco. Os finais de semana são venerados como entidades de graça
cíclica, que derramam felicidade e nos libertam das prisões de regime
semiaberto. De repente o mundo desaparece, e o reinado do Feriado se inicia.
Cada porta é uma fuga. Cada fuga é um pensamento não
processado. A racionalidade tem perdido espaço. Somos todos uma massa muda de
viciados em atenção. Não conseguimos lidar com nossa própria consciência. Não
suportamos lidar com nossas próprias decisões.
Decidimos que nem todos devem se alimentar. Decidimos
venerar uma liberdade que só é real para os detentores de capital. Decidimos
que o tratamento é mais lucrativo do que a cura. Decidimos sustentar um estado
social em que os baixos e médios brigam entre si por condições de vida
melhores, enquanto os altos apontam e riem. Decidimos eleger como governantes
as mesmas pessoas que nos oprimem. Decidimos assassinar pessoas como Martin
Luther King e Gandhi. Decidimos ignorar os milhões de anos de evolução e
cometer atrocidades por dogmas de dois mil. Decidimos que se a verdade nos
ofende, aqueles que a contam devem morrer. Decidimos que a cor da pele, a
ascendência e o sexo são individualmente suficientes para justificar a
submissão. Decidimos que países realmente existem e que guerras são ótimas para
manter populações unidas. Decidimos que diferente é sinônimo de mau.
Vivemos
a nossa própria distopia e nem ao menos nos damos conta.
São muitas decisões para um cérebro só. Não há como lidar
com tudo. O melhor é fugir. Ligar a televisão. Abrir uma cerveja. Pegar um
livro. Nenhuma pessoa permaneceria sã depois de contabilizar tantas escolhas. É
melhor deixar os neurorreceptores descansando, e acumular serotonina. É melhor
comemorar o Ano Novo do que pensar sobre o resto dele. É melhor fazer qualquer
coisa do que pensar.
Diego Novaes
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