segunda-feira, 2 de março de 2015

Não pense

   
 Desde que o homem se autoproclamou Senhor da Natureza, um muro irrevogável foi construído entre as duas partes. Bestial, voraz e selvagem, a natureza. Sensato, comedido e necessário, o homem. A História já nos informou na voz do historiador Reinhart Koselleck, que não há uma sequência única e absoluta para estágios culturais. Não há necessariamente ao longo do tempo uma conversão de “bárbaro” para “grego” ou “índio” para “civilizado”. Porém é inegável que na Modernidade não há mais comparação numérica lógica entre populações que se consideram parte da natureza e as que se colocam acima dela.
            Grandes homens da ciência como Richard Dawkins e Neil deGrasse Tyson, têm utilizado seu trabalho e renome para tentar convencer-nos o contrário. Mesmo assim, a história humana parece construir uma unanimidade de opinião quanto ao seu caráter superior. Descartes, no século XVIII, dizia que a linguagem é a materialização do nosso domínio. A irrefutável evidência da autocracia sobre o cosmo.
            Tudo isso foi construído pela racionalidade. Tão venerada racionalidade.  A qualidade que falta a tudo mais e que, por tanto, justifica a sua subjugação. Nesse sentido, os centros urbanos são o antro do Pensar. Quanto mais pessoas, mais razão. A tecnologia e o pensamento racional andam juntos, dizem alguns. Parece justo, então, inferir que o homem gosta de pensar. Alguns discordam.
            Em Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, livro de Philip K. Dick que deu origem ao renomado Blade Runner, a massa populacional utiliza constantemente um “sintetizador de ânimo”. Um aparelho capaz de suprimir ou estimular áreas do cérebro responsáveis pelo controle hormonal. Um controlador de emoções. Dentre suas centenas de configurações estão o 481, motivação baseada na esperança de futuro bom, 888, vontade de assistir TV, 003, vontade de ter vontade e 594, “agradecido reconhecimento da sabedoria superior do marido sobre todas as coisas”.
            Aldous Huxley, em sua obra prima, Admirável Mundo Novo, descreve um futuro de mecanização humana tão feroz que Henri Ford se tornou um messias. Não existem nascimentos naturais. Os homens são engenhados quimicamente para ocuparem lugares predeterminados no sistema de castas instaurado. Não existem famílias, e para aplacar questionamentos existenciais, o soma é utilizado sem restrições. O soma é uma droga de distribuição estatal, sem aparentes efeitos colaterais e cujo slogan é “Com um centímetro cúbico se curam 10 sentimentos lúgubres”.
            Já em 1984, livro de destaque de George Orwell, e talvez o romance mais importante do século XX, a realidade não é tão aprazível. Escrito em 1948, o livro é fruto de uma era conturbada, de conflitos genocidas e de estabelecimento de soberanias continentais. O protagonista, Wiston Smith, vive em Oceânia, um dos três amálgamas de nações totalitárias que compartilham o mundo. Observando o final da Segunda Guerra Mundial, Orwell extrapola o poderio dos três blocos socioeconômicos imaginando sua futura autocracia global. O capitalismo norte-americano, o socialismo soviético e o desenvolvimento vertiginoso das potências asiáticas. Independente do lugar, a autocracia, crua ou disfarçada, é o único sistema de governo presente.
            Nesse universo, também há tecnologias como as dos livros anteriores. No entanto, sua utilização é bem menos confortável. O Gim Victory, também de distribuição estatal, é descrito por Smith como o que o faz levantar da cama todas as manhãs e dormir todas as noites. Apesar dessa dependência, o protagonista não tem dúvidas acerca de sua qualidade: “A substância parecia ácido nítrico e ao engoli-la a pessoa tinha a sensação de receber um golpe de cassetete na nuca. Logo em seguida, porém, a ardência no ventre esmoreceu e o mundo começou a parecer mais prazeroso”
            Todas essas tecnologias, o sintetizador de ânimo, o soma e o Gim Victory, são mecanismos de controle social. Todas agem aplacando as dúvidas existencialistas e insatisfações sociais, transformando tudo num torpor agradável. Elas interrompem o diálogo-ponte entre consciência e realidade. Fabricam emoções que preenchem o vazio que inevitavelmente cresce em todo ser humano.
            Descritos nos romances, esses mecanismos parecem muito simples. Até idiotas. Tomam as pessoas por crianças, manipuláveis até o limite imaginável. Vemos seu mundo desmoronando, bombas explodindo, sirenes gritando, e, no entanto, a poltrona parece muito confortável enquanto doses industriais de serotonina se acumulam entre os neurônios. É angustiante ler a descrição de uma sociedade tão passiva e alienada como as expostas nas distopias clássicas.
Bem.
            Televisão, drogas, rádio, revistas, internet, telefones, publicidade, música, livros... funcionam todos da mesma forma. São todas tecnologias de transporte para uma realidade paralela. Interrompem a sua solidão, e por consequência, a sua autorreflexão. Fazem com que você absorva, através de estratégias psicológicas, qualquer coisa que for conveniente. Bloqueiam sua racionalidade.
            É evidente que os objetos citados são apenas ferramentas. Tal qual um martelo, podem construir ou machucar. Na verdade, boa parte deles desempenhou, e têm desempenhado um papel importantíssimo na distribuição de conhecimento. Na democratização de conhecimento. No entanto, é inegável a discrepante proporção numérica correspondente às funções dadas a essas tecnologias. A proporção que representa a quantidade de vezes em que pensamentos, necessidades e emoções são forjadas é absurdo. É tão visível que alienação se tornou sinônimo da maioria dos aparelhos.
            Aqui vale ressaltar que o entretenimento não é necessariamente uma coisa ruim. Faz parte do homem enquanto ser social. Que pessoa não gosta de rir? Sentir a dormência de um bom relaxante muscular? Não há meio de dissociar o homem de sua comunhão. Dessa forma, não há como delimitar até que ponto uma risada é genuína ou induzida por mecanismos artificiais de diversão.
            No entanto, não se trata de buscar o âmago do humor humano. Trata-se de desvendar o seu verdadeiro papel social na realidade Moderna. E este é, sem mais demoras, a fuga.
            Fugimos o tempo todo. É tudo que fazemos. Escutamos música no trajeto do trabalho. Ingerimos álcool até que um sorriso incontrolável brote nas nossas faces e a realidade pareça pouco importante. Ligamos o aparelho de TV para rir, chorar, nos assustar, viver uma vida que não é nossa. Viciamos-nos numa alegria fabricada pelos aparelhos da modernidade. Não existe mais solidão. Nossos celulares tocam incessantemente, nos avisando que pessoas estão interessadas em nós, e prontamente são respondidas pelo interesse recíproco. Os finais de semana são venerados como entidades de graça cíclica, que derramam felicidade e nos libertam das prisões de regime semiaberto. De repente o mundo desaparece, e o reinado do Feriado se inicia.
            Cada porta é uma fuga. Cada fuga é um pensamento não processado. A racionalidade tem perdido espaço. Somos todos uma massa muda de viciados em atenção. Não conseguimos lidar com nossa própria consciência. Não suportamos lidar com nossas próprias decisões.
            Decidimos que nem todos devem se alimentar. Decidimos venerar uma liberdade que só é real para os detentores de capital. Decidimos que o tratamento é mais lucrativo do que a cura. Decidimos sustentar um estado social em que os baixos e médios brigam entre si por condições de vida melhores, enquanto os altos apontam e riem. Decidimos eleger como governantes as mesmas pessoas que nos oprimem. Decidimos assassinar pessoas como Martin Luther King e Gandhi. Decidimos ignorar os milhões de anos de evolução e cometer atrocidades por dogmas de dois mil. Decidimos que se a verdade nos ofende, aqueles que a contam devem morrer. Decidimos que a cor da pele, a ascendência e o sexo são individualmente suficientes para justificar a submissão. Decidimos que países realmente existem e que guerras são ótimas para manter populações unidas. Decidimos que diferente é sinônimo de mau.
Vivemos a nossa própria distopia e nem ao menos nos damos conta.
            São muitas decisões para um cérebro só. Não há como lidar com tudo. O melhor é fugir. Ligar a televisão. Abrir uma cerveja. Pegar um livro. Nenhuma pessoa permaneceria sã depois de contabilizar tantas escolhas. É melhor deixar os neurorreceptores descansando, e acumular serotonina. É melhor comemorar o Ano Novo do que pensar sobre o resto dele. É melhor fazer qualquer coisa do que pensar.

                                                                                                                                   Diego Novaes
            

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