segunda-feira, 30 de março de 2015

Nightcrawler e o jornalismo criminal


            Em 18 de dezembro de 2014, Louis Bloom deu início a sua ascensão meteórica para o topo do jornalismo criminal de Los Angeles. Não era o que ele havia planejado, no entanto. Vagando de furto em furto, arrecadando o suficiente para uma sobrevivência discreta, procurava um emprego. Sem sucesso, é claro.


            Em parte, por ser ladrão, sim. Mas havia algo além. Talvez fosse o brilho gélido e penetrante de seus olhos, como um homem sem remorso. Bem abertos, atentos, em busca de qualquer oportunidade para uma nova manobra. Talvez fosse seu linguajar, estranhamente desenvolvido. Como alguém que se veste de retórica, como armadura e espada, para enfrentar o que quer que se apresente a frente. Ou, talvez ainda, seu sorriso desconfortante. Largo, porém exageradamente flexionado. Construído para despertar simpatia, mas usado inapropriadamente, como alguém com o humor desregulado. Como um faminto, prestes a imolar o cordeiro.
            Em fim, Lou descobre que, em L.A., crimes e acidentes têm alto valor de marcado. Se expostos da maneira certa. Crua. Um dos cameraman que apresenta, ingenuamente, sua profissão ao homem de olhar vidrado, diz “Se sangra, lidera”*. Mais tarde, vendendo a filmagem de uma vítima de tiroteio, Lou é apresentado a Nina,  produtora de um jornal local. Ela diz, aconselhando-o sobre o que filmar, “Pense em nosso noticiário como uma mulher gritando, correndo pela rua, com a garganta cortada”*. A apresentadora também sugere que busque crimes que atingem a classe alta e branca.
            Coincidentemente, a frieza e falta de moral de Lou o fazem perfeito para a carreira. Rapidamente, o sangue e vísceras ainda quentes, em suas filmagens o tornam preferência do jornal. Quanto mais trágico, mais poderoso. Lou sabe disso, e sabe também o poder que agora possui.
            O mercado da morte televisiva cresceu. Ganhou adeptos. Fez filiações. Antes fazia-se tímido, acuado nas madrugadas insones, apelando para narrativas dramáticas, mais do que para imagens, tanto pelo conteúdo visceral quanto pela falta de material filmado. Aos poucos, aventurou-se pelos telejornais do jantar, testando a quantidade de brutalidade que os consumidores podiam engolir. Engoliram tudo. Atendendo ao mercado, os jornais invadiram o horário do almoço. Entregam diariamente o prato principal, carne mal passada, estendida no chão, preenchida com chumbo e vazando o recheio cor de vinho.
            É assim que o jornalismo investigativo funciona, dirão uns. Não há nada de jornalístico em fazer troça do pesar alheio. Em incitar a violência de retribuição aos violentos. Em se aproveitar da tragédia privada, tal qual um abutre sobrevoando áreas carentes, de alta criminalidade. Em sentar num banco de delegacia à espera de qualquer alcoolizado disposto a expor seus problemas frente uma câmera.
            “Ser jornalista investigativo é morar de aluguel, viver com orçamento apertado, e denunciar escândalos de milhões. É remar contra a correnteza num rio cheio de pedras e ser aconselhado a viver uma vida mais tranquila. É ter medo de tomar um tiro e sofrer uma emboscada. É imaginar que os opositores tentem vingar-se atingindo seu calcanhar-de-aquiles, a família.(...)”
            Esse fragmento foi retirado do livro Narcoditadura: o caso Tim Lopes, crime organizado e jornalismo investigativo no Brasil, de Percival de Sousa. Publicado em 2002, ano da morte do jornalista, o livro gasta várias páginas legitimando o trabalho de investigadores sociais, verdadeiros defensores públicos, tais como Tim. Na ocasião de seu assassinato, Arcanjo Antônio Lopes do Nascimento estava investigando denúncias de moradores da Vila Cruzeiro, no Complexo do Alemão acerca de tráfico de drogas e exploração sexual em bailes de funk no próprio bairro. Na quarta visita ao local, foi identificado pelos traficantes e levado à presença de Elias Maluco, chefe da organização criminosa. Lá teve os pés feridos por tiros para incapacitar uma tentativa de fuga. Em seguida teve as pernas amputadas a golpes de facão e, posteriormente, o corpo queimado com óleo e querosene.
            O que Percival tenta deixar claro é que Arcanjo Lopes era conhecido. Reconhecido. Trabalhava abertamente contra a perpetuação de organizações criminosas de opressão social. Eventualmente, suas investigações desvelavam as verdadeiras engrenagens que sustentavam o funcionamento dessas instituições, sendo muito diferentes dos bandidos pintados em baixas condições sociais. Tim despertou inimizades. Recebeu ameaças. Sua companheira de profissão, Cristina Guimarães, decidiu em determinado momento, deixar o país, após acumular um montante considerável de ameaças. Ambos agiam como verdadeiros jornalistas.
            Seguindo o mesmo viés literário, porém investigando outro lado da opressão social, está Rota 66: a polícia que mata, de Caco Barcellos. Procurando expor a atmosfera visceral do objeto de sua investigação, o autor, assim como Percival, faz descrições detalhadas dos assassinatos e investidas policiais. Perseguições ao som de rajadas de fuzil. Execuções ante súplicas e confirmações de indefesa. Nesse caso, os agressores não são traficantes, mas homens da lei. Ou assassinos disfarçados de tal.       
            A diferença da violência exposta nos livros citados e daquela vomitada em rede nacional através da televisão é o papel social de cada. Antes, há o controle de público alvo de ambas as mídias, sendo a dos livros visivelmente mais regulamentada. Depois, seu corpo textual é composto, em maior parte, de discurso investigativo e de análise social da realidade abordada. As descrições de crimes compõem parte da retórica de incitação à mobilidade, em vias legais, da população ante as instituições criminosas.
            O “jornalismo” criminal televisivo, verdadeiro teatro de horrores, se aproveita de ocorrências policiais para incitar a retribuição vingativa dos espectadores. É responsável pela disseminação de preconceitos baseados em estupidez e preguiça. Promove o desvio da atenção dos inconformados para a fonte dos problemas do quais reclamam. Transformam a morte brutal num espetáculo.
            Louis Bloom, personagem de Jake Gyllenhaal, não é um psicopata em busca de emprego. Não é um aproveitador inclinado para o sadismo. Não é um empreendedor desprovido de moral. Somos nós, toda vez que nos mostramos coniventes com injustiças sociais. Sabemos o que está acontecendo, o que deve ser feito. Conhecemos os culpados. Mas permanecemos estáticos. Calados. De olhos bem abertos. Assistindo.


*tradução livre
Diego Novaes

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