É fácil perceber uma
demanda compulsória de por quês na
atualidade. O que hoje parece comum, na verdade remete a um processo antigo de
quebra de correntes. A libertação da herança medieval de abominação à ciência,
culminando na consolidação do cientificismo no final do último milênio,
acompanhou uma lenta, mas clara, renovação cultural do homem. Renovação em
todos os âmbitos. Na ciência, política, economia e, não menos importante, no entretenimento.
Nessa última esfera,
a renovação atingiu seu ápice no século XIX com o firmamento de um novo gênero
literário: a ficção científica. É claro que podemos observar suas raízes em
autores anteriores a esse período como Edgar Allan Poe e Jules Verne. Mas a
real afirmação do gênero só se deu com a publicação das inquestionáveis obras
de Isaac Asimov, Arthur C. Clarke e Aldous Huxley.
Uma vez na
superfície, o sci-fi se espalhou pelas inúmeras áreas da produção artística e
hoje vemos sua herança atrelada a quase tudo que consumimos. E não há nada de
errado nisso. É bom saber o por quê
das coisas. É reconfortante entender a fundamentação das propostas que, por
falta de tempo ou dinheiro, ainda são impossíveis. Em Matrix, os personagens possuem habilidades sobre-humanas porque
habitam um tecido lógico de programação. Válido e justo.
O problema aparece
quando desculpas preguiçosas tentam se aproveitar da autoridade conquistada por
esse gênero. É desgastante observar roteiros bem-apadrinhados de holywood
gastarem milhões e faturarem outros, vendendo histórias sob a propaganda do
sci-fi. Highlander 2 é, para muita gente, um dos marcos dessa prostituição. Uma
história que havia sido construída sob conceitos mágicos acabou se tornando uma
reutilização pobre de conceitos em voga na época.
É claro que o mundo,
em todos os seus antros, está repleto de coisas bem e mal feitas. Isso não foi
uma generalização. Mas, num ambiente em que a ciência abraça, de uma forma ou
de outra, com mais ou menos qualidade, tudo que consumimos, é preciso que
alguém diga algo pelo gênero que foi posto de lado: a fantasia.
Tornou-se comum, pelo
próprio processo que descrevemos, a associação desse gênero a uma verdadeira
“ficção desmedida”, um conjunto raso de mentiras. É um erro natural.
Quando produzimos
histórias – seja para filmes, livros, HQ, etc – estamos inventando coisas. São inegavelmente mentiras. Independentemente do
gênero, as verdades que podem estar presentes foram de alguma forma moldadas ao
sabor do criador. E, na verdade, as boas histórias merecem retoques. Heróis
como Beowulf e Aquiles seriam muito pouco se suas aventuras não melhorassem a
cada canto dos bardos e poetas.
A beleza da Fantasia
está centrada no fato de que ela não se importa com as mentiras. Não é
necessária uma fundamentação científica para a magia de Gandalf. Ou uma
dissertação sobre buracos-de-minhoca para justificar a existência de um mundo
inteiro dentro de um guarda-roupa. Nem mesmo contratos bem redigidos sobre o
por quê de a varinha escolher o bruxo. Se olharmos com atenção, vamos perceber
que nenhuma dessas histórias é sobre magia. Mas sobre perseverança, coragem e
amizade. Os feitiços e encantamentos são apenas desculpas para tratar de
assuntos muito mais importantes.
Há um livro chamado
Elantris, de Brandon Sanderson, que ilustra bem essa despreocupação com os
aspectos formais da narrativa e a real intenção de transmitir uma mensagem mais
profunda. (sinopse)
Obviamente há o
sobrenatural na história. Porém, o sistema mágico é tão pouco relevante que
permanece um mistério durante quase toda a narrativa. Na verdade, o alicerce da
obra é, sem dúvida, o seu jogo político. A delicada diplomacia entre cidades de
reinos antagônicos e ainda o papel ideológico das religiões e suas igrejas,
consomem, de forma positiva, o talento do autor.
Porém, há ainda outro
aspecto da obra que reforça o encantamento por esse gênero literário. A cidade
que dá nome ao livro é apresentada como um antigo antro de desenvolvimento que
abrigava semideuses, mas que foi assolada por algum tipo de maldição. Agora o
local é reservado a pessoas atingidas por uma doença que as faz ter a pele
manchada por um cinza pútrido, perder os pelos do corpo e acumular a dor de
todo e qualquer ferimento que lhes ocorrer daí em diante. A cidade tornou-se um
ambiente completamente à parte do mundo. Um lugar onde o sofrimento é o prato
do dia, todos os dias.
Aí está a metáfora, e
brilhantismo, da obra. Elantris representa o que nós somos induzidos a fazer
quando postos em situações de extremo estresse. Procuramos liderança. Tentamos
apoiar nossa esperança em figuras que estão além da nossa capacidade. Mas, no
desespero, facilmente elegemos ídolos falsos. Também duvidamos. Pomos à prova
nossos ideais e certezas, e naturalmente caímos no ceticismo. Desacreditamos
nossos semelhantes e nos fechamos em receio. Naturalmente tentamos fugir da
realidade e nos direcionamos para uma alienação reconfortante. Tentamos
entorpecer o sofrimento. E por fim, quando a dor é insuportável, enlouquecemos.
É isso que Elantris representa.
A Fantasia tende a
nos enganar para poder contar uma verdade.
Mas seria um equívoco
dizer que não há coesão no gênero. Mundos fundamentados na lógica com sistemas
coesos de política, economia, linguística e biologia estão por toda parte. Na
verdade, nas listas de melhores livros de fantasia da atualidade, a hard-fantasy domina sem piedade. Séries
como The Kingkiller Chronicles, de Patrick Rothfuss, e A Song of Ice and Fire,
de George R. R. Martin assustam pela complexidade de seus mundos e pelo tamanho
da horda de seus fãs.
Outro discurso usado
para fomentar o descrédito à Fantasia é o do escapismo. Um discurso que é, sem
dúvida, também direcionado à ficção como um todo. Mas que acaba atingindo de
forma muito mais feroz o gênero mágico devido a sua “aparente” fuga do mundo
convencional.
Primeiro: o que há de
tão errado em fugir um pouco? Se colocado num lugar desconfortável, cheio de
pessoas indelicadas, num tempo em que a empatia é escassa, e alguém oferecesse
uma saída temporária, por que não aceitar? Fuga não é necessariamente sinônimo
de fraqueza. Nenhum homem é forte o suficiente para vivenciar tudo que o mundo
imprime sem em algum momento fazer um intervalo, tomar fôlego. E é isso que a fantasia
oferece, com maior propriedade do que qualquer outra coisa. Uma porta aberta.
Também é comum ouvir
verdadeiras palestras sobre falta de utilidade da fantasia. Todos os famosos
elementos mágicos - dragões, magos, elfos e guerreiros – são categorizados como
inúteis devido a sua aparente falta de conexão com a realidade. Mundos
funcionais inteiros são discriminados porque, aos olhos desatentos, não levam a
nada. Seria muito mais simples perguntar de que serve a imaginação.
Olhe
ao redor. Há algo no seu campo de visão que não precisou ser imaginado antes de feito? É tão simples
que tendemos a esquecer do vital papel dos nossos sonhos. Na verdade, nós temos
a obrigação de sonhar. De querer mudar o que conhecemos e o que não nos agrada.
De tornar o mundo mais bonito e não deixar nossos problemas para as próximas
gerações. Temos a obrigação moral de alimentar a nossa imaginação e de
despertar a insatisfação com a nossa própria realidade nos homens e mulheres
que virão depois de nós.
E o que melhor para
aquecer a mente de uma criança do que um pouco de dragões e magia?
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