quarta-feira, 4 de março de 2015

Sobre mentiras


É fácil perceber uma demanda compulsória de por quês na atualidade. O que hoje parece comum, na verdade remete a um processo antigo de quebra de correntes. A libertação da herança medieval de abominação à ciência, culminando na consolidação do cientificismo no final do último milênio, acompanhou uma lenta, mas clara, renovação cultural do homem. Renovação em todos os âmbitos. Na ciência, política, economia e, não menos importante, no entretenimento.
Nessa última esfera, a renovação atingiu seu ápice no século XIX com o firmamento de um novo gênero literário: a ficção científica. É claro que podemos observar suas raízes em autores anteriores a esse período como Edgar Allan Poe e Jules Verne. Mas a real afirmação do gênero só se deu com a publicação das inquestionáveis obras de Isaac Asimov, Arthur C. Clarke e Aldous Huxley.


Uma vez na superfície, o sci-fi se espalhou pelas inúmeras áreas da produção artística e hoje vemos sua herança atrelada a quase tudo que consumimos. E não há nada de errado nisso. É bom saber o por quê das coisas. É reconfortante entender a fundamentação das propostas que, por falta de tempo ou dinheiro, ainda são impossíveis. Em Matrix, os personagens possuem habilidades sobre-humanas porque habitam um tecido lógico de programação. Válido e justo.
O problema aparece quando desculpas preguiçosas tentam se aproveitar da autoridade conquistada por esse gênero. É desgastante observar roteiros bem-apadrinhados de holywood gastarem milhões e faturarem outros, vendendo histórias sob a propaganda do sci-fi. Highlander 2 é, para muita gente, um dos marcos dessa prostituição. Uma história que havia sido construída sob conceitos mágicos acabou se tornando uma reutilização pobre de conceitos em voga na época.
É claro que o mundo, em todos os seus antros, está repleto de coisas bem e mal feitas. Isso não foi uma generalização. Mas, num ambiente em que a ciência abraça, de uma forma ou de outra, com mais ou menos qualidade, tudo que consumimos, é preciso que alguém diga algo pelo gênero que foi posto de lado: a fantasia.
Tornou-se comum, pelo próprio processo que descrevemos, a associação desse gênero a uma verdadeira “ficção desmedida”, um conjunto raso de mentiras. É um erro natural.
Quando produzimos histórias – seja para filmes, livros, HQ, etc – estamos inventando coisas. São inegavelmente mentiras. Independentemente do gênero, as verdades que podem estar presentes foram de alguma forma moldadas ao sabor do criador. E, na verdade, as boas histórias merecem retoques. Heróis como Beowulf e Aquiles seriam muito pouco se suas aventuras não melhorassem a cada canto dos bardos e poetas. 
A beleza da Fantasia está centrada no fato de que ela não se importa com as mentiras. Não é necessária uma fundamentação científica para a magia de Gandalf. Ou uma dissertação sobre buracos-de-minhoca para justificar a existência de um mundo inteiro dentro de um guarda-roupa. Nem mesmo contratos bem redigidos sobre o por quê de a varinha escolher o bruxo. Se olharmos com atenção, vamos perceber que nenhuma dessas histórias é sobre magia. Mas sobre perseverança, coragem e amizade. Os feitiços e encantamentos são apenas desculpas para tratar de assuntos muito mais importantes.
Há um livro chamado Elantris, de Brandon Sanderson, que ilustra bem essa despreocupação com os aspectos formais da narrativa e a real intenção de transmitir uma mensagem mais profunda. (sinopse)
Obviamente há o sobrenatural na história. Porém, o sistema mágico é tão pouco relevante que permanece um mistério durante quase toda a narrativa. Na verdade, o alicerce da obra é, sem dúvida, o seu jogo político. A delicada diplomacia entre cidades de reinos antagônicos e ainda o papel ideológico das religiões e suas igrejas, consomem, de forma positiva, o talento do autor.
Porém, há ainda outro aspecto da obra que reforça o encantamento por esse gênero literário. A cidade que dá nome ao livro é apresentada como um antigo antro de desenvolvimento que abrigava semideuses, mas que foi assolada por algum tipo de maldição. Agora o local é reservado a pessoas atingidas por uma doença que as faz ter a pele manchada por um cinza pútrido, perder os pelos do corpo e acumular a dor de todo e qualquer ferimento que lhes ocorrer daí em diante. A cidade tornou-se um ambiente completamente à parte do mundo. Um lugar onde o sofrimento é o prato do dia, todos os dias.
Aí está a metáfora, e brilhantismo, da obra. Elantris representa o que nós somos induzidos a fazer quando postos em situações de extremo estresse. Procuramos liderança. Tentamos apoiar nossa esperança em figuras que estão além da nossa capacidade. Mas, no desespero, facilmente elegemos ídolos falsos. Também duvidamos. Pomos à prova nossos ideais e certezas, e naturalmente caímos no ceticismo. Desacreditamos nossos semelhantes e nos fechamos em receio. Naturalmente tentamos fugir da realidade e nos direcionamos para uma alienação reconfortante. Tentamos entorpecer o sofrimento. E por fim, quando a dor é insuportável, enlouquecemos. É isso que Elantris representa.
A Fantasia tende a nos enganar para poder contar uma verdade.
Mas seria um equívoco dizer que não há coesão no gênero. Mundos fundamentados na lógica com sistemas coesos de política, economia, linguística e biologia estão por toda parte. Na verdade, nas listas de melhores livros de fantasia da atualidade, a hard-fantasy domina sem piedade. Séries como The Kingkiller Chronicles, de Patrick Rothfuss, e A Song of Ice and Fire, de George R. R. Martin assustam pela complexidade de seus mundos e pelo tamanho da horda de seus fãs.
Outro discurso usado para fomentar o descrédito à Fantasia é o do escapismo. Um discurso que é, sem dúvida, também direcionado à ficção como um todo. Mas que acaba atingindo de forma muito mais feroz o gênero mágico devido a sua “aparente” fuga do mundo convencional. 
Primeiro: o que há de tão errado em fugir um pouco? Se colocado num lugar desconfortável, cheio de pessoas indelicadas, num tempo em que a empatia é escassa, e alguém oferecesse uma saída temporária, por que não aceitar? Fuga não é necessariamente sinônimo de fraqueza. Nenhum homem é forte o suficiente para vivenciar tudo que o mundo imprime sem em algum momento fazer um intervalo, tomar fôlego. E é isso que a fantasia oferece, com maior propriedade do que qualquer outra coisa. Uma porta aberta.
Também é comum ouvir verdadeiras palestras sobre falta de utilidade da fantasia. Todos os famosos elementos mágicos - dragões, magos, elfos e guerreiros – são categorizados como inúteis devido a sua aparente falta de conexão com a realidade. Mundos funcionais inteiros são discriminados porque, aos olhos desatentos, não levam a nada. Seria muito mais simples perguntar de que serve a imaginação.
            Olhe ao redor. Há algo no seu campo de visão que não precisou ser imaginado antes de feito? É tão simples que tendemos a esquecer do vital papel dos nossos sonhos. Na verdade, nós temos a obrigação de sonhar. De querer mudar o que conhecemos e o que não nos agrada. De tornar o mundo mais bonito e não deixar nossos problemas para as próximas gerações. Temos a obrigação moral de alimentar a nossa imaginação e de despertar a insatisfação com a nossa própria realidade nos homens e mulheres que virão depois de nós.

E o que melhor para aquecer a mente de uma criança do que um pouco de dragões e magia? 

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