No último domingo
(15/03), alguns milhares de cidadãos foram às ruas do país exigir mudanças
políticas. Houve quem pedisse o resgate da nação pelos militares. Houve quem
discriminasse Paulo Freire pela barba. Quem exigisse o exílio da presidenta para
sua suposta sentença de morte na Indonésia. Também houve quem pedisse reforma
política. Quem demandasse transparência nas investigações do escândalo da
Petrobras. Quem execrasse a corrupção infiltrada no governo. Evitando o tom
genérico, houve diversas pautas misturadas num conglomerado considerável, porém
menor do que a princípio divulgado, de insatisfeitos. Imagino que essa seja a
palavra comum. Insatisfação.
De toda forma, as passeatas do dia 15, assim como as do
dia 13, foram formas legítimas da expressão do descontentamento. E, como dito
pela presidenta, são próprias da democracia. Nenhuma manifestação pacífica
desse gênero será suprimida por força estatal. É importante, então, ressaltar
que não houve quebra-quebra, baderna, revolta, conflito ou linchamento.
Porém, sobrou ódio. Não de um grupo. Não de um lado. Não
de um final de semana. Mas de um país. Um que luta contra si mesmo.
A cobertura dos acontecimentos foi feita, em larga
escala, através da maior emissora de concessão estatal do país. Foi
inegavelmente tendenciosa. Mostrou e contabilizou de acordo com seu interesse
capital. Os mecanismos de comunicação pré-internet são sempre controlados pelas
forças de poder e opressão. Acredite, havia interesse.
Em seguida, deu-se, através da plataforma “democrática” da
informação, o contra golpe. A raiva aferida nas ruas foi respondida em sites,
blogs, comunidades e redes sociais, infelizmente, com mais raiva. Os escritores
encontraram nas avenidas um prato cheio para suas justificativas ideológicas,
sim. Porém deve ser coerente dizer que também havia interesse aí.
Então ódio foi respondido com ódio.
O jornalista e defensor dos Direitos Humanos, Leonardo
Sakamoto, decidiu dois dias após as manifestações (17/03), fechar seu blog para
comentários. Por mais de oito anos, publicou, reafirmou e reconstruiu sua
opinião em conjunto com os leitores que prontamente iniciavam discussões na
página. Sempre lidou, disse ele, com os raivosos inconsequentes que passavam
por sua plataforma, de forma a respeitar também suas opiniões. De uns tempos
pra cá, culminando na terça-feira, não pôde mais corroborar com a ferocidade da
violência dos comentários e cancelou a opção. Havia raiva direcionada não às
suas opiniões, mas ao rótulo de ideologia vinculada ao seu nome.
Nas eleições do ano passado, o país mostrou sua
bipolaridade. Dois lados que se diziam certos e que indicavam os opositores
como encarnações do mal. Corruptores ou ladrões da liberdade. Já nesse período,
a violência estava escancarada. Disseminada por cada esquina. Cada bar, sala de
aula e lar.
De todo modo, isso não é importante agora. Não é o
momento para discutir o certo e o errado. A justiça e a calúnia. O que devemos
enxergar, enquanto nação, é que perdemos o foco. Não sabemos mais quem devemos
combater, porque estamos combatendo nós mesmos.
George Orwell, em 1984, nos alertou sobre o ódio enquanto
ferramenta de ilusão. Dizia ele que num Estado divido entre Baixos, Médios e
Altos, mecanismos seriam criados para promover a luta entre Médios e Baixos
enquanto, confortavelmente sentados, os Altos assistiriam aos conflitos. Na
disputa, os lados lutariam por melhoria ou manutenção das condições de vida,
através de ideologias e força física. No entanto, ambos estariam sendo
privados, pelos Altos, do verdadeiro conforto e estabilidade. “Dividir para
conquistar”.
Soa familiar?
No livro Simulacros e simulação, do francês Jean
Baudrillard, uma de suas análises recai sobre a corrupção. Diz que os
escândalos são ferramentas do próprio sistema para se justificar. Ao ser
desmascarado, o caso de corrupção vira troféu da justiça pública. Os envolvidos
são caracterizados como indivíduos com desvio de conduta social, que não
correspondem com resto dos trabalhadores do Estado. De acordo com o autor, o
sistema é a própria corrupção. O individualismo crescente se mostra de forma
mais crua na corrupção, o favorecimento próprio financiado pela violência ao
outro.
O Brasil parece construir um quadro próprio. Afinal, aqui
“todo político é corrupto”. Queremos todos a mesma coisa. Porém, deixamos
pormenores impedirem nosso diálogo. Verificamos a corrupção histórica
construída abertamente através dos anos e, no entanto, ainda caímos nas mesmas
armadilhas de dissuasão. Nós acreditamos na televisão. Esquecemos se a Seleção
vencer. Deixamos passar porque é pouco. Damos um jeito.
Ainda não chegamos aos 30 anos de democracia. Estamos
aprendendo a respeitar o discurso alheio e entender que cada um é, no entanto,
responsável pelo que diz. Estamos aprendendo a votar e a exigir. Estamos
aprendendo a dialogar e a fazer greve. Não podemos, porém, perder o foco da luta.
Agradecimentos a Tiago Quirino
Diego Novaes
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